Quando uma pessoa precisa de tratamento ou medicamento que não foi incorporado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas não tem condições de arcar com os custos na rede particular, quem ela deve processar para obtê-lo: União, estado ou município?

A discordância sobre a resposta para essa pergunta tem causado consequências graves para as pessoas mais pobres que buscam tratamento. O Brasil vive atualmente um vaivém de ações sobre o tema que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça não têm sido capazes de conter.

Juízes estaduais que recebem esses casos têm pedido a emenda da inicial para inclusão da União no polo passivo, uma vez que é dela a responsabilidade de incorporar tratamentos e remédios à lista do SUS. Com isso, o processo migra para a Justiça Federal.

E juízes federais, a quem cabe decidir a própria competência, têm devolvido esses casos por entender que não necessariamente a União deve estar na ação, uma vez que todos os entes federados têm obrigação solidária na assistência à saúde, conforme decisão do STF.

Essa situação gera conflitos de competência que precisam ser resolvidos pelos tribunais de apelação e atrasam a análise de liminares e a própria concessão de tratamento ou remédio, em prejuízo ao paciente, que, não raro, tem urgência para obtê-lo.

Quando a controvérsia chegou ao Supremo, o Plenário da corte estabeleceu uma saída para evitar prejuízo do cidadão até que uma decisão definitiva seja alcançada: as ações relativas a tratamentos ou medicamentos não incorporados ao SUS devem ser processadas e julgadas pelo juízo — estadual ou federal — ao qual foram direcionadas pelo cidadão.

Fica vedada, assim, a declinação da competência ou a determinação de inclusão da União no polo passivo dessas ações. Ao STJ, o tema chegou em incidente de assunção de competência (IAC) — que se encontra sobrestado — e a solução foi essencialmente a mesma.

Ao que tudo indica, porém, ambas as ordens vêm sendo olimpicamente descumpridas nos juizados especiais brasileiros. A 1ª Seção do STJ tem julgado o descumprimento do IAC 14 em diversas reclamações, analisadas antes mesmo de o caso passar pelo segundo grau.

 

O colegiado ainda estuda admitir que esses descumprimentos sejam decididos em conflitos de competência, um incidente que a tese aprovada no IAC 14 expressamente fixou como incabível. A proposta é da ministra Assusete Magalhães no CC 192.170, que está em vista regimental com o relator, ministro Gurgel de Faria.

Enquanto isso, correm no STF rodadas de negociação para alcançar uma solução para o problema. Relator do Tema 1.234 da repercussão geral, o ministro Gilmar Mendes criou uma comissão especial que funcionará até o próximo dia 18 para mediação e conciliação.

Participam da comissão representantes da União (AGU, Ministério da Saúde, Anvisa e Conitec), dos estados (Conpeg, Conass, Fórum de Governadores) e dos municípios (Frente Nacional de Prefeitos, Confederação Nacional de Municípios e Conasems).

Há ainda um séquito de observadores com possibilidade de manifestações orais ou escritas, que vai desde representantes do Congresso e do Tribunal de Contas até membros das Defensorias Públicas, do Ministério Público e de órgãos de classe como a OAB.

Por que isso está acontecendo?
O principal fator que explica esse cenário é o poder público brasileiro não estar minimamente estruturado para resolver as demandas relacionadas à saúde.

Em 2017, uma auditoria do Tribunal de Contas da União concluiu que faltam mecanismos de controle e de coleta, processamento e análise de dados para subsidiar a tomada de decisões na área. O resultado é a ampla judicialização que experimentamos atualmente.

A definição no SUS de qual ente federativo deve financiar e ofertar cada produto ou serviço depende de uma ampla articulação e negociação entre gestores federais, estaduais e municipais, um trabalho que dificilmente será substituído por uma decisão judicial.

Especialmente porque, no caso de medicamentos e tratamentos não incorporados ao SUS, não existe um responsável legalmente estabelecido para arcar com esse custo. O fato de a União ter a atribuição de determinar a incorporação não a torna automaticamente o alvo da ação judicial.

Ela sequer é a única responsável. O artigo 19-P, incisos II e III, da Lei 8.080/1990 permite que estados e municípios criem suas próprias listas de incorporados, sem depender da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).

Porém, como eles pouco utilizam essa prerrogativa, a União acaba responsável por, efetivamente, financiar a imensa maioria dos medicamentos e tratamentos do SUS. Esses dados reforçam a ideia de que, por isso mesmo, ela deveria constar no polo passivo das ações judiciais.

Segundo o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), esse cenário leva estados e municípios a se omitirem ou, ao menos, não se empenharem para cumprir sua cota na obrigação de assistência à saúde do brasileiro.

Ainda segundo a auditoria do TCU, outro grande problema é o Ministério da Saúde não ter sistematizado e regulado os ressarcimentos financeiros entre os entes federativos, conforme autorizado pela Lei 8.080/1990.

Se a União custeia um procedimento que deveria ser pago pelo município, ela não tem meios eficientes de cobrar a verba e tapar o rombo. Na contramão, há casos em que estados e municípios são notificados pelo Judiciário para custear ações e serviços de competência da União.

Consequências
A ação tramitar na Justiça estadual ou na Federal faz toda a diferença para a pessoa pobre — em regra, quem depende do SUS. E a Defensoria Pública acaba sendo o principal canal para tentar concretizar o acesso à saúde garantido pela Constituição de 1988.

De maneira geral, é melhor escolher a Justiça estadual. A Defensoria Pública dos estados tem capilaridade muito maior, já que possui 6,3 mil defensores presentes em 1,2 mil municípios, número ainda insuficiente se considerarmos as 9,6 mil unidades judiciárias do Brasil.

Ainda assim, é melhor do que o caso tramitar na Justiça Federal. A Defensoria Pública da União tem 644 defensores espalhados por 72 municípios, e as varas federais estão espaçadas em somente 984 cidades. Os dados são todos do Condege e foram apresentados ao STF.

Incluir a União no polo passivo de toda e qualquer ação sobre medicamentos e procedimentos não incorporados ao SUS vai obrigar hipossuficientes a fazer longos deslocamentos em busca de decisões judiciais, além de sobrecarregar os defensores e, ao fim e ao cabo, prejudicar o acesso à Justiça.

Na opinião de Thaísa Guerreiro de Souza, coordenadora de saúde da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, outra consequência é o desequilíbrio financeiro. Nem todo medicamento, se incorporado ao SUS, necessariamente será de competência da União.

“Estaríamos antecipando uma responsabilidade para a União, que, muitas vezes, não tem qualquer apoio na forma de organização do SUS e nos critérios para definição da competência. Isso é antecipar um ônus que pode quebrar o SUS”, avisa ela.

Há também o potencial de desgaste político pelo repasse de um ônus da administração pública ao Poder Judiciário. Nesse caso, a tomada de decisão na arena política e administrativa é transferida para a arena judicial, o que atrasa a resolução de todos os casos individuais.

Juízes e juizados por todo o Brasil estariam autorizados a decidir de maneira desigual, e difícil de uniformizar, algo que caberia, em princípio, à Comissão Intergestores Tripartite, responsável por negociar e definir aspectos operacionais do SUS.

O que dizem até agora
Sem decisão de mérito sobre a questão, o Supremo já recebeu diversas manifestações de interessados sobre o tema. A Procuradoria-Geral da República, por exemplo, defendeu que a União seja incluída em todas as ações sobre tratamentos e medicamentos não incorporados pelo SUS.

Isso porque diversas leis a colocam no ponto central para tomadas de decisões estratégicas coordenadas sobre o sistema de saúde. Ainda assim, a PGR recomendou que o STF analise possíveis efeitos nocivos da federalização absoluta e imediata dos processos.

Para o Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais do Estados e Distrito Federal (Conpeg), a impossibilidade de ressarcimento posterior é justamente o que impõe que a União, ente federativo mais poderoso, esteja obrigatoriamente no polo passivo das ações de saúde.

Já a Advocacia-Geral da União argumentou em petições que impor a federalização da saúde implicaria verdadeira barreira ao acesso à Justiça, a ser suportada de forma mais significativa pelas pessoas em situação de mais vulnerabilidade.

É um drama próprio de um país de proporções continentais que elegeu um sistema único a ser gerido e financiado em conjunto por meio de uma federação centralizada.

Nas palavras do ministro Gurgel de Faria, a situação “está caindo na cabeça do hipossuficiente”. A fala foi dada quando a 1ª Seção definiu as teses na questão de ordem no IAC 14. “A parte às vezes morre sem o remédio”, destacou ele.